domingo, 26 de janeiro de 2020

Travessia

  “O diabo na rua, no meio do redemoinho” 

    



ROSA, João Guimarães. “Grande Sertão: Veredas”. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Por: J.Nito

      O titulo deste texto é a síntese da minha experiência com a leitura de "Grande Sertão: Veredas" de João Guimarães Rosa. O romance foi publicado em 1956 sendo um monologo sem divisão em capítulos e com quase 600 paginas, por isso a sensação de, de fato, estar passando por uma travessia. Contudo, a imersão que esta leitura proporciona deixa claro que a travessia é de extrema importância para reflexões sobre questões físicas e metafísicas.


      No livro encontramos descrições sobre a fauna e a flora de parte do interior do Brasil - os personagens transitam nos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Sobre uma perspectiva regionalista o texto pode ajudar nos estudos sobre nossa brasilidade. Porem,  o que mais nos deixa preso a esta leitura é o caráter de transcendência em relação ao regionalismo. O autor aborda temas universais para o ser humano, como a existência de Deus e do diabo, o amor e o ódio, a vida e a morte, o sofrimento e a alegria, entre outros mais.


"O diabo na rua, no meio do redemoinho"


      Esta frase é encontrada ao longo da obra em diversos momentos, e ela revela o ar poético e metafísico no qual a travessia segue. O personagem principal Riobaldo, um ex-jagunço, narra suas lutas e seus medos, se vendo constantemente mergulhado em saudade  por seu amor Otacília, e em um redemoinho de pensamentos relacionados a seus desejos mais íntimos e perturbadores. Paralelo a isso Riobaldo filosofa e poetiza no olho do furacão de sua travessia, devaneando sobre a existência de Deus e o diabo.

Minha primeira poesia

   
        Como já dito, minha experiência com a leitura deste livro foi e ainda esta sendo –sobretudo agora escrevendo sobre esta leitura- uma verdadeira travessia. Travessia que me colocou em lugares que jamais achei que poderia adentrar. Por exemplo, eu nunca imaginei que pudesse escrever uma poesia! Destarte, o lugar em que este livro me transportou me inspirou poeticamente também. Quando dei por mim estava declamando uma poesia:



      Nonada, palavra inicial do poema, sendo também a palavra que da inicio a historia em Grande Sertão: Veredas. Significa coisa de pouca importância, de pouco valor, insignificante, ninharia. Não quero explicar o significado desta poesia, embora a leitura do livro possa levar a algum entendimento sobre ela. Só posso dizer que as entrelinhas em que percorri nesta travessia sopraram aos meus ouvidos essas palavras, com isso, me fez ver o que não estava vendo. Seria muita pretensão minha tentar explicar este livro -e não é essa a intenção aqui-, mas tenho que dizer: a impressão que tive ao ler este livro era de estar dentro da maior poesia sobre o amor já escrita.


A intersubjetividade na leitura de livros

     
     Para você que for se aventurar nas diversas travessias em que os livros proporcionam, deixo uma reflexão do filosofo *Arcângelo R. Buzzi, sobre o ato da leitura: “a compreensão do livro é sempre intersubjetiva. Nele esta contida uma profundidade da experiência humana que não pertence ao autor nem ao leitor. Mas que pertence a obra do livro como tal. E que não pode ser explicada a partir do contexto econômico-social ou psíquico-individual. Só pode ser pensada. Ler não é explicar. É pensar”.

      Sobre a relação dialética ocorrida em contato com um texto Buzzi aconselha “ler dialogando. O livro é encontro. À medida que for lendo, de suas paginas surge o interlocutor que fala e discute com você, opõe resistência, provoca, engana, ensina, ouve e confirma. O livro é templo de sabedoria. Quem nele entra, cumpre o oráculo de Apolo: “Conhece-te a ti mesmo””. Posto isso, só tenho a dizer que "Grande Sertão: Veredas" é um dos livros mais transcendental  que já li. Para quem se entregar de corpo e alma será impossível sair do outro lado da travessia sendo o mesmo que entrou. 



Frases e aforismos de “Grande Sertão: Veredas”




"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou."

“todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue”

“Sertão: é dentro da gente”.

"Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá."

“Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é."

“sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso..."

"Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende."


"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."

"Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto."

“A força de Deus quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se discutindo, se economiza.”



“Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.”


“Quem desconfia fica sábio.”


“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”


“Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”

“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.”



Romance metafísico

     
     Ainda sobre a verve metafísica, no vídeo abaixo o sociólogo e crítico literário **Antonio Candido, faz uma analise sobre o livro e coloca que a obra de Guimarães Rosa se trata de um “romance metafísico” e acrescenta que “a força do Grande Sertão: Veredas é a ambiguidade é o paradoxo é o deslizamento constante de sentido”.



Assista entrevista dada por Antonio Cândido sobre a obra de Guimarães Rosa:









Rara entrevista  de Guimarães Rosa

     
      Assista a uma rara entrevista de João Guimarães Rosa com Walter Höllerer para um canal de televisão independente em Berlim, em 1962. Ao que parece, essa é uma  das únicas imagens em movimento do escritor, retiradas do documentário "Outro Sertão", dirigido por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. Guimarães Rosa apresenta o livro Grande Sertão: Veredas. Rosa foi embaixador em Berlim em 1936.



     





Sobre o autor

       João Guimarães Rosa (1908-1967) nasceu em Cordisburgo, interior de Minas Gerais, no dia 27 de junho. Fez parte do terceiro tempo do Modernismo, caracterizado pelo rompimento com as técnicas tradicionais do romance.
     
      Cursou Medicina na Faculdade de Minas Gerais, formando-se em 1930. Datam dessa fase seus primeiros contos, publicados na revista O Cruzeiro.

      Foi o terceiro ocupante da Cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1967. Fez parte da terceira geração modernista, chamada de "Geração de 45".

     
      Guimarães Rosa escreveu contos, novelas, romances. Muitas de suas obras foram ambientadas pelo sertão brasileiro, com ênfase nos temas nacionais, marcadas pelo regionalismo e mediadas por uma linguagem inovadora (invenções linguísticas, arcaísmo, palavras populares e neologismos). 

     Foi um estudioso da cultura brasileira. Sua obra que merece maior destaque e por ter sido a mais premiada, é “Grande Sertão: Veredas”, publicada em 1956 e traduzida para diversas línguas. 

Algumas obras de Guimarães Rosa: 


Magma (1936)

Sagarana (1946)

Com o Vaqueiro Mariano (1947)

Corpo de Baile (1956) dividida em três novelas: “Manuelzão e Miguilim”, “No Urubuquaquá, no Pinhém” e “Noites do sertão”.

Grande Sertão: Veredas (1956)

Primeiras Estórias (1962)

Campo Geral (1964)

Noites do Sertão (1965)


      
      No auge da carreira de escritor e diplomata, Guimarães Rosa, com apenas 59 anos, faleceu na cidade do Rio de Janeiro, dia 19 de novembro de 1967, vítima de infarto. 



Notas de rodapé:


*Buzzi, Arcângelo Raimundo: “Introdução ao pensar- O Ser, o Conhecimento, a Lingaugem”Ed. Vozes, 26ª Edição – Petrópolis 1999. (Parágrafos citados: pag. 187-196) .

**Antonio Candido (1918-2017) foi um sociólogo, crítico literário, ensaísta e professor. Figura central dos estudos literários no Brasil. Autor de “Formação da Literatura Brasileira”, livro fundamental para quem quer entender a literatura brasileira.